ANTES DE FREUD

BEM ANTES DA PSICANÁLISE, JULES COTARD, ESPECIALISTA EM "AMOLECIMENTO CEREBRAL", INTRODUZIU A NOÇÃO DO EU E A IDÉIA DO PSIQUISMO ORGANIZADO EM ID, EGO E SUPEREGO


No último quarto do século XIX, após um trabalho pioneiro de Jean Baptiste Parchappe de Vinay, o estudo das lesões encefálicas enconcontrou-se na questão do "amolecimento cerebral" - com o intuito de explicar as origens das doenças mentais. Na mesmo época, pesquisadores como Griesinger, Morel e, principalmente J. P. Falret insistiam em outras causas: as lesões à "sensibilidade moral". Era a abertura para o estudo sobre o efeito dos processos instintivos e afetivos na produção da loucura.

Um discípulo de Falret, Jules Cotard (1800-1866), importante especialista em "amolecimento cerebral", transformou a doutrina da lesão à sensibilidade moral em teoria psicodinâmica da origem da insanidade, introduzindo a noção do eu na psicopatologia. Sua concepção da "sensibilidade moral" remete à formulação freudiana do princípio do prazer: "Sirvo-me da expressão cenestesia ou sensibilidade geral para designar os estados gerais de dor ou de prazer". Na seqüência, Cotard se pergunta o que há em comum a todas as formas de sensibilidade. Antes de formular o conceito de pulsão, que o fez rever vários pontos de sua teoria, Freud escreveu: "A intensificação das tensões estimulantes é sentida em geral como desprazer, e a diminuição delas, como prazer. (...) O eu tende ao prazer e quer evitar o desprazer".

Também a idéia de uma tripartição da organização psíquica em um id instintivo, um ego mediador e um superego exigente e moralizante foi intuída por Cotard. "Nos estágios avançados da doença o desdobramento da personalidade assume freqüentemente uma forma maniqueísta em que um espírito do bem trava uma luta contra o espírito do mal, deixando o eu reduzido à completa passividade, e a atividade psíquica fragmentada em três partes".

Freud assinalou: "A exigência mais pesada para o eu é manter sob controle as exigências instintivas do id, mas também a demanda do superego pode ser tão forte e enexorável que o eu permanece como que paralisado".

Em outro trecho, Cotard aborda a questão do desenvolvimento do sujeito: "Pode ocorrer que os complexus [sic] de idéias doentias que constituem o novo eu se ajuste mais facilmente ao antigo". O autor formula ainda um conceito de motivação inconsciente, um dos pilares da teoria freudiana: "O sentimento de livre-arbítrio parece resultar, sobretudo, da nossa ignorância dos fenômenos psíquicos [sic] inconscientes que precedem e comandam pensamentos e determinações. Na cadeia da sucessão dos atos psíquicos apenas alguns elos são percebidos pela consciência. O primeiro ato psíquico consciente nos parece uma causa porque não vemos os anéis precedentes aos quais está ligado e que permanecem mergulhados nas trevas do inconsciente".

Essas idéias de cotar foram publicadas em 1879, no artigo "Folie", escrito para o Dictionnaire encyclopédique des sciences médicales, cerca de dez anos antes que a paciente histérica que se tornou conhecida como Anna O. recorresse aos cuidados de Breuer. Portanto, bem antes das primeiras formulações fredianas da teoria psicanalítica.

PESSOTTI, Isaias. Antes de Freud. In: Mente & Cérebro, a.XIV, no.163, ago.2006, p.27







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