UM FILÓSOFO, UMA IDÉIA: DELEUZE E A CRIAÇÃO DE CONCEITOS





O pensador francês defende a história da Filosofia como ponto de partida para uma apropriação e produção de idéias. Por Roberto S. Kahlmeyer-Mertens


Giles Deleuze (1925-1995) é representante de uma certa tradição francesa interessada na história da Filosofia. No entanto, seria incorreto dizer que ele é um historiador da Filosofia, a menos que o considerássemos um historiador-filósofo ou um filósofo-historiador. ao abrir esse precedente, seríamos obrigados a admitir que outros expoentes da Filosofia, como Foucault, Canguilhem, Aubenque, alquié e Beaufret, também teriam de ser classificados dessa maneira, o que só mostra a inutilidade do clichê.


Segundo Deleuze, a história da Filosofia é ponto de partida para uma apropriação e criação de idéias, plano de imanência, no qual gravitam e se articulam os conceitos. Em uma das parcerias com o psicanalista Félix Guattari (1930-1992), Deleuze propõe a seguinte definição: "a Filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos.


Nesse espírito, a Filosofia é um pensamento que, em vista da tradição histórica, não repete os filósofos, mas subverte a idéia deles, retomando o passado com o intuito de ccriá-lo, o que demonstra que a história da Filosofia não é um obstáculo a ser contornado, mas é matéria da qual se parte e sem a qual nada se produz.


A palavra "produção", geralmente associada a manufatura, significa "fabricação em massa de determinado bem". O termo traz o estigma de uma prática industrial e todas as críticas associadas a ela. Mas, no contexto deleuziano, o termo remete à idéia de criação de conceitos: algo que é típico da filosofia e do modo com o qual esta pode intervir no rumo de sua história.


Deleuze sintetiza algumas dessas idéias no documentário L'Abécédaire de Gilles Deleuze: "Muita gente pensa que a Filosofia é uma coisa muito abstrata ew para especialistas. Creio e vivo de tal forma a idéia de que a Filosofia não é uma especialidade que tento colocar o problema de outra forma. Quando se crê que a filosofia é abstrata... Um filósofo é alguém que cria. Cria um gênero de coisas de fato especiais: cria conceitos. O conceito não está pronto, não passeia pelo céu, não o contemplamos. É preciso criá-lo, fabricá-lo.



Pensar de modo novo



A criação e a transformação do mundo não são outras coisas além da colaboração que cada filósofo oferece ao pensar questões em sua cultura, em sua língua, diante das urgências conceituais de seu tempo. Desse modo, todo conceito é elaborado a partir da detecção de um problema. Não necessariamente na descoberta de novos conceitos, mas na inquietação pelo aperfeiçoamento dos antigos ora deslocados ou em ambigüidades geradas pelas imprecisões lingüísticas, que nos deixam distantes dose seus significados mais próprios. Nesse sentido, a criação precisa agenciar vocabulários de áreas vizinhas, como as Ciências e as Artes, para atingir o propósito criativo de batizar o conceito como um dispositivo que nos permite pensar o mundo de modo novo.

O conceito e sua criação, pensados como dinâmica, não limitam a Filosofia a uma postura comtemplativa, voltadas às formas puras e ideais. ela envolve o conhecer a si mesmo, o aprender a pensar, o estranhamento pelo que seja o ente, atitude que Deleuze, ironicamente avalia como "atitudes interessantes, se bem que fatigantes em longo prazo".

Observemos que a crítica do filósofo atinge as principais posturas da Filosofia. entretanto, Deleuze parece reconhecer, na idéia clássica da Filosofia como amizade (philia), algo ainda que genuíno a ser pensado desde suas origens gregas. Embora referenciando essa experiência de origem, a apropriação interpretativa que o filósofo faz da amizade é a de um personagem conceitual. Assim, o amigo é a voz do conceito, sendo aquele que competentemente expressa o significado do conceito, personificando-o. O que nos permite afirmar, seguindo esse raciocínio, que o conceito "substância" é o amigo Aristóteles; o conceito "cogito" é o amigo Descartes; o conceito "mônada" é Leibbiz; a "potência" é Schelling.

Toda criação conceitual, segundo Deleuze, é um modo singular do mundo ser visto e nomeado, portanto essa proposição faz com que cada autor seja locutor de seu tempo e interlocutor da história da Filosofia. Tal como compreendida no âmbito de criação conceitual, a amizade é o afeto do filósofo ao conceiro, a habilidade e competência que aquele tem para fazer deste a matéria filosófica. A philia que faz com que o filósifo se afim às idéias que nomeiam e renomeiam o mundo presente e o que está por criado.

(Texto extraído da Revista Discutindo Filosofia, a.2, n.8, p.60-1)

Um comentário:

Dario Saraiva disse...

Achei bastante bom o comentário do Professor Kahlmeyer-Mertens. O artigo consegue dar uma idéia da filosofia de Deleuze, com uma linguagem acessível sem se tornar banal.
Acompanho a revista da qual se tirou o texto, mas não conhecia esse.
Parabéns aos administradores do site pela veiculação de textos de tão bom nível